Rezar com a Sagrada escritura


Quanto amamos a Bíblia?

 “Toda a escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar para argüir, para corrigir e para educar na justiça; assim o homem de Deus se encontra perfeito e preparado para toda obra boa” (2Tim.3,16-17).

1.        Um livro proibido para os fieis?

No começo da evangelização da América, Frei Juan de Zumárraga, primeiro Bispo do México (1528-1548), o primeiro que viu a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe milagrosamente estampada na tilma do índio Juan Diego, desejava que todos os naturais pudessem ler a Bíblia em suas próprias línguas. “Não aprovo a opinião, dizia, do que dizem que os idiotas [as pessoas que carecem de instrução] não [devem ler] as divinas letras na língua que o vulgo usa, porque Jesus Cristo o que quer é que seus segredos largamente se divulguem. E assim eu desejaria, por certo, que qualquer mulherzinha lesse o evangelho e as cartas de São Paulo.  E digo ainda mais, que pluguiese a Deus que estivessem traduzidas em todas as línguas do mundo para que não somente leia os índios senão também outras nações bárbaras [possam] ler e conhecer, porque não há duvidas que o primeiro degrau para a cristandade é conhecê-la em alguma maneira”[1].

Quer Jesus que seus segredos largamente se divulguem!

Ao mesmo tempo em que o grande Bispo do México escreve estas palavras, em Espanha a inquisição se sentia obrigada a proibir as traduções da Bíblia em língua popular, não para impedir que os fieis a lessem, senão porque naquele momento não viam outro modo de preservá-los das heréticas interpretações como, ante os olhos de todos, se via no exemplo dos paises afetados pelos reformadores protestantes. Poderá discutir-se sobre o caminho empregado para tal fim , sobre sua oportunidade ou exageração (que logo nos resultados concretos se demonstrou não carente da devida cautela, de fato Espanha resistiu a heresia de maneira que não fizeram também as católicas França e Itália.
      Escrevia Dom Marcelino Menéndez e Pelayo em sua imortal Historia dos heterodoxos espanhóis: “A ninguém escandalize a sabia cautela dos inquisidores do século XVI. Postas as Sagradas escrituras em romance [= as línguas modernas derivada do latim] sem nota nem aclaração alguma, entregadas ao capricho e a interpretação individual de leigos e dos que não são doutos, de mulheres e meninos, são como espada em mão de um furioso, e só servem para alimentar o cego e irreflexivo fanatismo, de que deram tão amarga mostra os anabatista, os puritanos, e todo a multidão de seitas, bíblicas nascidas ao calor da Reforma. Como entregar sem comentários ao povo livros antiguíssimo, em língua e em estilo semíticos ou gregos, feitos de frases, modismo e locuções hebréias ou gerado de altíssimo sentido místico e profético? Como há de distinguir o ignorante o que é historia e o que é lei, o que é lei antiga e o que é lei nova, o que se propõe para imitação ou para o castigo, o que é símbolo ou figura? Como há de penetrar os diversos sentidos do sagrado texto?

A que loucuras não teriam arrastado a irreflexiva leitura de Apocalipse?
Para evitar pois, que propagasse os videntes e profetas e tornassem os dias do Evangelho Eterno e aqueles outros que os mineiros de Turingia desfaziam com seus martelos as cabeças dos fariseus, vedou sabiamente a Igreja o uso da Bíblia em romances, reservando a concede-los em casos especiais”[2].

A Igreja já tinha aplicado semelhantes proibições ante outros perigos semelhantes, como no tempo dos valdenses o tinha feito um concilio de Tolosa e reproduzindo Dom Jaime o conquistador em 1233. A finalidade defensiva era clara, como demonstra o fato de que passado o perigo, a proibição ficou esquecida  e hoje possuímos uma Bíblia catalana completa que parece ser traduzida no século XV, e vários fragmentos, alguns muito considerável, de outras versões diferentes. E consta que em 1478 se imprimiu em Valencia uma tradução catalana das Sagradas Escrituras, que interviram Fr. Bonifácio Ferrer, irmão de São Vicente, e outros teólogos[3].  E ademais, segue dizendo o grande escritor espanhol, “em Castilla, onde o perigo de heresia era menor, não ouve nunca tal proibição assim vemos que Dom Alfonso é sábio, em sua Grande e geral historia, escrita a imitação da Historia escolástica, de Pedro coméstor, intercalou boa parte Livros Sagrados traduzidos ou extraídos em modo vulgar. Em 1430,aos pedidos e persuasão do mestre de Calatrava, D. Luis de Gusmán, fez rabi Moseh Arragel uma tradução completa, notabilíssima como língua, que todavia faz inédita na biblioteca dos Duques de Alba. Isto sem contar outras muitas versões, anônimas e parciais, que se conservam em El Escorial e as que fez dos evangelhos e das Cartas de São Paulo o converso de Martin de Lucena, a quem dizia o Macabeu, aos pedidos do Marquês de Santillana”[4].
Creio que é inolvidável que esta medida, “de força maior” se se quer, partia de um temor fundado que em alguns passava a raia da exageração. Assim, por exemplo, teólogos do porte de Melchor Cano tinham que a Bíblia lida por pessoas simples pudessem alimentar as heresias dos falsos místicos protestantes, “os iluminados”, e em conseqüência insistia em negar-lhes tal privilégio: “Por mais que as mulheres reclamem com insaciável apetite comer deste fruto (ler a Sagrada Escritura) é necessário vedá-lo e por faca de fogo, para que o povo não chegue a ele”[5]; e também “a experiência tem ensinado que a lição de semelhantes livros em especial com liberdade de ler a Sagrada Escritura,ou toda ou em grande parte dela é transladá-la ao vulgar tem feito muito dano as mulheres e aos ignorantes [=gente sem instrução=]”[6].  Não estava de acordo Santa Tereza de Jesus, que se queixava escrevendo: “Que tão pouco temos que ficar, as mulheres, fora de gozar as riquezas do Senhor” e “tenho por certo que nos consolemos e deleitemos em suas palavras e obras”[7].  No livro da vida escreve a santa: “quando tiraram muitos livros de romance,que não se lessem, eu senti muito, porque muitos me davam recreação ler-los e eu já não podia deixar-los em latim; me disse o Senhor . Não tenha pena que Eu te darei livro vivo”[8]. Os livros de romance a que se refere a santa eram não só obras de autores estrangeiros de duvidosa ortodoxia, senão também de alguns espirituais espanhóis, como São João de Ávila, São Francisco de Borja, Barnabé de Palma, Bartolomeu de Carranza, Luis de Granada; e também, com já temos indicado mais acima, a mesma Sagrada Escritura.
O texto de Zúmarraga, já citado, demonstra que tal postura não era universal. Há autores como Menéndez e Pelagio, que minimizam o prejuízo causado pela proibição entre a gente sensível[9], o que não se condice com o “eu senti muito”da Santa avilense; mas quizá que esta se referia mais que nada aos autores espirituais e não tanto a Sagradas Escrituras. 
De todos modos mais adiante esta rigor amansou, e ainda em Espanha ficou em vigor a quarta regra do Índice tridentino, que deixa ao bom juízo do Bispo ou do inquisidor, prévio conselho do pároco ou confessor do interessado, conceder ou não a leitura da Bíblia em língua vulgar por licença in scriptis[10]
 
Como já temos dito estas proibições, de todos os modos, não tiveram caráter universal.  De fato, não estiveram de acordo com o rigor dos eclesiásticos espanhóis, os Bispos italianos e franceses do concilio de Trento.
            Ao mesmo tempo, os missionários em terras governadas pela coroa espanhola, traduziam partes da Bíblia, em particular os evangelhos e as epistolas, e alguns livros do antigo testamento como o livro de Jó e de Tobias[11]. Assim fizeram em torno de 1530-1540, os franciscanos Frei Arnaldo de Bassac, (traduziu epistolas e evangelhos que cantam que se cantam na Igreja por todo ano), Frei Bernardino de Sahagún (escreveu uma apostila sobre as cartas e Evangelhos dominical), Frei Alonso de Molina (traduziu os evangelhos do ano todo), Frei Juan de Ramanones (traduziu fragmentos da Sagrada Escritura para seu exercício e para utilidade dos pregadores dos índios), Frei Luis Rodriguez (traduziu o livro dos provérbios). Todos estes fizeram do latim ao náhuatl.  Frei Maturino Gilberti, o.f.m., Traduziu

Parcialmente a Bíblia para o tarasco.
E tem-se em conta que a Inquisição começou a funcionar na America desde o 5 de junho de 1538. Precisamente, em 1572 o Santo Oficio de México faz uma consulta ao Frei Alonso de Molina sobre a versão da Bíblia a língua do povo[12].
O qual respondeu o teólogo que se proibira os índios ter textos da Sagrada escritura sem exposição mas não sem ela (com notas interpretativas), “e que devem gozar delas como os outros cristãos”[13].  E de mesmo tenor é a resposta do Frei Domingo da Anunciação, O.P. [14] Os missionários pois afirmaram com toda a força e claridade o lugar central que a Bíblia ocupou ( e ocupa) na obra evangelizadora da Igreja.
            Daí que seja uma grande injustiça a acusação do protestantismo que não se cansa de afirmar que a Igreja proibiu a leitura da Bíblia a seus fieis, confundindo uma disposição temporal, determinada por serias razões teológicas e pelo bem mesmo de seus fieis. Como expressa Menédez e Pelagio: “A que se reduzem as declamações dos protestantes?  Longe de estar privados os espanhóis do século XVI do manjar das Sagradas Escrituras, penetrava em todas as almas assim o espírito como a letra delas e nossos doutores não se fartavam de encarecer e recomendar seus estudos, como pode ver-se em muitas passagens recopiados por Vilanova”[15].




[1] Almoina, J.,Rumbos Heterodoxos no México, Trujillo (1974), 158-159. Tomo estes dados de Vital Alonso, A Bíblia no novo mundo, Revista Bíblica, ano 50 (1988),126. Tenho modificado as palavras que no original figuram no espanhol antigo e tenho introduzido alguns colchetes com explicações.
[2] Menéndez e Pelagio, Historia dos Heterodoxos espanhóis, Livro V,V (“O -índice expurgatório- internamente considerado”)
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.
[5] A. cavalheiro, Conquenses ilustres, II, Madrid (1871), cit, por O. Steggink, Experiência e realismo em Santa Tereza e São João da Cruz, Madrid (1974), 169.
[6] Cit. Por M. Andrés, A teologia espanhola no século XVI, II, Madrid (1978), 573. 
[7] Santa Tereza de Jesus, conceitos de amor a Deus, n.8.
[8] Santa Tereza de Jesus, Livro da vida, 25, 5, 5. Se trata do “índice de livros proibidos” , publicado pelo inquisidor Fernando de Valdés em Valladolid no 17 de agosto de 1559.
[9] “Para dizer a verdade, a privação não era grande; porque quem não sabia latim no século XVI?  Pois todo o soubesse ainda que fosse um rapaz estudante de gramática, estava autorizado para ler a vulgata sem notas. E o povo e as mulheres teriam a sua disposição as traduções em versos dos livros poéticos, que jamais se proibiram, certos comentários e paráfrases e muitos livros de devoção, que se lhes dava, primorosamente engastada, uma boa parte do divino texto.  Fácil seria fazer uma formosa Bíblia reunindo e concordando os lugares que traduzem nossos ascéticos”(Menéndez e Pelagio, historia dos heterodoxos espanhóis, Livro V,V).    
[10] Ibidem.
[11] Para os sados que seguem cf. Vital Alonso, A Bíblia no novo mundo ,op. Cit., 126-131.
[12] Livros e livretos do século XVI publicados do arquivo da nação, México 1914.  Citado por Zulaica, R., Os franciscanos e a imprenta no México no século XVI, México (1939), 93-94.   
[13] “Será em detrimento dos naturais, o tirar os ministros do Evangelho, qualquer coisa das Escrituras ditas acima traduzidas em dita língua é muito dificultosa e difícil de aprender, e que com muito trabalho se tem traduzido nela e declarado o melhor que se possa em sua língua, conforme ao verdadeiro frasis, e maneira de falar dos ditos naturais (...) Quanto ao quarto que se pergunta, digo: que se proíba e vede que os índios não tenha coisa da Sagrada Escritura sem exposição empero com ela que parecem que devem gozar dela como os outros cristãos” (citado em Zulaica , R., op cit., 94-95).   
[14] “Respondemos: que falando em rigor, precisamente o livro que não se pode excluir para poder pregar e ensinar é as Epistolas e Evangelhos, que anda de mão, e ainda, este seria necessário corrigir e por em mais perfeição dos que comumente anda” (livros e livretos, op. cit., 83-84). 
[15] Menéndéz e pelagio, Historia dos heterodoxos espanhóis, Livro V,V.

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