Coleção virtus


CEGOU SEUS OLHOS

4. Remédios

Extremis malis, extrema remedia, diz o ditado ( para grandes males, grandes remédios). Ou em boca de Hamlet:

Diseases desperate grown
By desperate appliance are relieved,
Or not at all [1]

Olhando, pois, as características que temos assinalado para este mal, encontramos, per oppositum, os remédios para curá-lo.

1) Humildade

Por ter raiz na soberba, há de curar com extrema humildade.  Sendo que os juízos próprios provem do alto conceito que temos em nossos juízos e pontos de vista, não há melhor remédio que a humildade.  “humildade no parecer” é saber duvidar de si mesmo naquilo que não tem mais fundamento que nossa opinião.  Humildade é reconhecer necessitado de conselho e buscá-lo com sinceridade.  Humildade é deixar-se corrigir,  aceitar com simplicidade as correções e colocá-las em pratica com prontidão.  Humildade é aceitar por principio que nossos pontos de vista são míopes (especialmente no que toca aos juízos sobre nós mesmos) e ser consciente que “quatro olhos vêem melhor que dois”.  Como diz o Sirácidas: não desprezes o discurso dos sábios, volta sempre as tuas sentenças, pois é deles que apreenderás a disciplina e a arte de servir os poderosos.  Não te afastes do discurso dos anciãos, porque eles mesmos estiveram na escola de seus pais. (Si 8, 8-9). E o livro dos Provérbios: O sábio escuta os conselhos (12,15).

2) Docilidade

Por ser um modo de persistência se cura com docilidade.  Docilidade ao Espírito Santo, a palavra revelada, ao magistério da Igreja, aos superiores, ao diretor espiritual.  São João de Ávila diz: “Maldito seja este parecer próprio, que tanto trabalho dá a quem o tem, e que tanto desacato é contra Deus!... Tem cuidado não de reger-los, mas de contentá-los como Deus os rege. Vossa vontade é torta, e vosso parecer cego: não queirais tais guiadores. Guie aquela vontade sumamente boa e que não possa querer senão o bem. Rege aquele saber que não engana e nem é enganado.  Encha de vosso cuidado Naquele que tão bem cuida e vela sobre os que a Ele se encomenda.  Aproximai-vos Daquele que os viu antes que vos nascestes”.[2]

As mais notáveis atitudes de docilidade é a Regra de Santo Inácio que sinala como principio fundamental para unificar nossos juízos com os da Igreja: “Devemos ter em conta para acertar em tudo, o branco que eu vejo, devo crer que é negro, se a Igreja hierárquica assim o determina, crendo que entre Cristo Nosso Senhor, esposo, e a Igreja sua esposa, é o mesmo espírito que nos governa e rege para a saúde de nossas almas, porque pelo mesmo Espírito que Nosso Senhor, deu os dez Mandamentos, é assim regida e governada nossa Santa Mãe Igreja”.[3]
Não se trata aqui de negar o que é evidente, senão pelo contrario, de não absolutizar nossas percepções.  Por isso Santo Inácio nos disse- e isso há que ressaltá-lo- que devemos acreditar que o branco é negro, senão que o “branco que eu vejo”; na versão vulgata diz “quod oculis nostris apparet album”: o que a nossos olhos parece branco. Esta regra nos manda desconfiar de nossas ponto de vista, sempre falíveis e marcados pela ferida da ignorância original.  Nos manda, pois, desconfiar de percepções e juízos degenerados muitas vezes por inumeráveis prejuízos.

3) Desapego

Ao ter raiz em algum afeto desordenado, como temos dito se faz necessário o desapego, é dizer, o trabalho particular sobre as paixões que dominam nossos juízos condicionando-os.  Só quem é senhor de suas paixões será também imparcial senhor de seus juízos.

4) Obediência

Por ser rebeldia (especialmente nos religiosos) é necessário, como disse Santo Inácio, “prende-lo debaixo da obediência”. Por isso, Santo Inácio manda “vencer e prender o juízo debaixo da santa obediência” sempre que a jurisdição da vontade possa estender-se sobre o entendimento, “como é onde não tem evidencia que o force”[4]

Pede a seus religiosos que avantajem aos demais institutos religiosos em “abnegação de nossos juízos”[5].  E sinala como o grau mais perfeito de obediência o de sujeição do juízo (o primeiro é da obediência em execução, o segundo da obediência de vontade, e o terceiro é este). Essa obediência se trata, da oblação que faz a vontade do mesmo juízo racional naquelas coisas “em que não lhe força a evidencia da verdade conhecida”; é ali que “pode com a vontade inclinar-se mais a uma parte que a outra; e em tais todo verdadeiro obediente dever inclinar-se a sentir o que seu superior sente”[6].  Fixemo-nos que Santo Inácio não manda sujeitar o juízo naquilo que é evidente e claro para a inteligência; nisto, se o superior manda ao contrario (e não é pecado), basta com a obediência de execução e vontade.
   
Mas no que é opinável e não é evidente, deve aceitar como bom e melhor o parecer de quem esta por cima de nós.  E explicar isso inclusive nas coisas humanas: “ainda nas coisas humanas, comumente o sentem os sábios, que é prudência verdadeira não fiar-se de sua própria prudência, e em especial nas coisas próprias, onde não são os homens comumente bons juízes pela paixão”[7].

Isto vale sobre tudo em questões espirituais: “E é certo que em coisas e pessoas espirituais é ainda mais necessário este conselho, por ser grande o perigo da via espiritual quando sem freio de discrição se corre por ela.  Pelo qual disse Cassiano na colação do abade Moisén: “Como nenhum outro vicio o demônio leva tanto ao monje precipitar-se em sua perdição, como quando lhe persuade que, desprezados os conselhos dos mais ancião, se confie em seu juízo, resolução e ciência”[8].

5) Negação de si mesmo

Por ser uma auto-afirmação, não há mais que negar-se a si mesmo.  É dizer, saber duvidar de si (nas coisas que tem que duvidar; pois alguns duvidam do que tem que ser firme e certo).  E saber negar o próprio parecer no pouco (nas coisas e opiniões pequenas).  Assim como o que deixa levar pelo juízo próprio nas coisas pequenas, cada vez se deixa levar mais pelo juízo próprio nas coisas maiores, assim também o que nega seu ponto de vista nas coisas pequenas, se deixa iluminar por Deus nas coisas cada vez maiores.  Disse São João de Ávila; “Quem está acostumado a crer-se, e estima seu entendimento por sábio, querendo sair com seu parecer nas poucas coisas [= de pouca importância], se achara novo e dificultoso em negar seu parecer nas coisas maiores.  E, pelo contrario, o exercitado em coisas pequenas a   chamar a seu entendimento de necio e a confiar pouco nele, acha-se já facilitado para sujeitar-se, ou ao parecer de Deus ou de seus maiores, ou para não julgar facilmente ao seu próximo.”[9]             

6) Espírito de fé

Finalmente, porque o juízo próprio nos conduz a ter juízos contrapostos aos divinos (e inclusive pode fazer precipitar em pecados contra a fé) devemos exercitar o espírito de fé.  O espírito de fé, é o modo de julgar que procede dos princípios da fé.  Nos faz ver de um modo totalmente distinto, e inclusive diametralmente oposto, ao dos mundanos, pagãos, fariseus e necios: o mistério da dor, da morte, da eternidade, a obra da providencia, o mistério da historia, as obras dos homens, as maquinações dos ímpios, a perseguição dos justos e a obediência aos que estamos sujeitos.

Este mistério julga tudo a luz de três critérios;

1° o primeiro é a dependência de Deus.  Ainda que o ímpio diga em seu coração “não existe Deus”, o homem de fé repete as palavras do Senhor: Nem sequer um cabelo de vossas cabeças cairá sem a permissão de Deus (Lc 21, 18).

2°O segundo critério é o da providencia amorosa de Deus, que nos ensina que todas as coisas, inclusive a dor, a perseguição e o mal, ocorrem para o bem dos eleitos: Nós sabemos que Deus coopera em  tudo para o bem daqueles que o amam (Rom 8, 28).

3° O terceiro critério é o da centralidade de Deus e Cristo, que nos ensina que Paulo, Apolo, Cefas, o mundo, a vida, a morte, as coisas presentes e futuras. Tudo é vosso; mas vos sois de Cristo e Cristo é de Deus (1 Cor 3, 21-22).  O único importante é Cristo.  Por isso ante Ele há que dizer como o Batista: É preciso que Ele cresça e eu diminua (Jo 3, 30).

O espírito de fé gera submissão aos superiores, docilidade ao conselho alheio, plena conformidade com a vontade divina nas tribulações da vida.   
    
5. Conclusão

O fruto de não seguir nosso parecer, nosso próprio juízo, senão o de Deus (através dos superiores, diretores espirituais, etc.) é a paz da alma.  Ninguém repete esta idéia tanto como o grande São João de Ávila; por exemplo:

-“Assim é que, se nós tiramos de nossa alma o zombador (cf. Prov 22, 10), teríamos paz, se desejássemos nosso próprio parecer e seguíssemos os de Deus e deixássemos  Ele fazer, em nossa casa teria paz.  Tira fora teu próprio sentido e ficaras em paz...  Não há que ter parecer para o que Deus quer de ti.  E por isso tem guerra, porque queres ter um sim e um não na boca... -Faz isto! - Não quero.  Não faças isto!  -Sim quero. 
-Pois o que se põem no querer de Deus, sem querer sim nem não, tira fora o escarnecedor (= diabo, burlador)”[10].

“-De onde nascem as angustias que tens, esses descontentamento, esse nunca achar bem, esse nunca contentar de coisa que acontece, que parece que nenhuma coisa se faz bem?  De vosso parecer... Corta esse parecer, que não sabe se foi bom isso o que se fez , que tu agora querias... Prova que não sabes o que é o melhor para ti.  Ponha-se em   segurança da raiz desta arvore e corte-a; corta esse  parecer e descansaras, logo terá sossego; nenhuma coisa acontecerá, por contraria que seja ao que tu queres, que te de pena; tira essa raiz, terá alegria, terá paz”[11].
-“ Em que esta o viver em paz?  -Em crer que Deus tem cuidado do que o cumpre; em reger por seu parecer; em crer que aquele é o melhor, ainda que a vosso juízo não pareça assim,
Tira, tira, pois esse parecer; desapegue do que tu sabes, do que tu queres do que a ti te parece que cumpre. Apegasse ao saber de Deus. Rege-te só ao parecer de Deus.  Nega-te a ti mesmo e segue a Cristo. Triste de ti que quando faz o parecer de Deus te pesa, e quando fazes o que tu queres te alegras.  Quando pensa que tem que fazer a vontade e Deus, temes, e quanto o que tu queres, te alegras.  Deveria ser ao contrario.  Não esta melhor confiar em Deus que em ti?...  Nunca chegaras a Cristo senão tira este teu parecer”[12].

Para terminar vale a pena meditar aos poucos este outro texto do grande Santo andaluz: “Tomando, pois, castigo destas coisas, os adverte que, assim como tem de ser inimiga de vossa vontade, assim muito mais vos será de vosso parecer, e de querer sair com a vossa, pois que vês o mal paradeiro que tem o próprio parecer... e ainda que seja em coisas levianas, não sigais, porque as duras penas acharas coisas que tanto turbe o sossego que Cristo quer em vossa alma para comunicar-se com ela, como o porfiar e querer sair com a vossa.  Mais vale que não façais o que vos desejais, que perder coisa que tanto tens para gozar de Deus em sossego”[13]


[1] Shakespeare, Hamlet, IV, 3, “As enfermidades, crescidas ate a desesperação/ ou se curam por remédios desesperados/ ou não se curam de modo nenhum”.
[2] São João de Ávila, Carta 56,OC, 1, 531,136-158.
[3] É a regra 13° das regras para sentir com a Igreja: EE, n. 365
[4] Santo Inácio, Carta ao P.Urbano Fernandes, p. 810.
[5] Santo Inácio, Carta aos Jesuítas de Portugal, 1, p. 852.
[6] Santo Inácio, Carta aos Jesuítas de Portugal, 3, p. 854.
[7] Santo Inácio, Carta aos Jesuítas de Portugal, 3, p. 855.
[8] Santo Inácio, Carta aos jesuítas de Portugal, 3, p.855.
[9] São João de Ávila, Audi filia, c.55.
[10] São João de Ávila, Sermão 19, OC, II, 299, 31-44.
[11] São João de Ávila, Sermão 78, OC, II, 1215, 258-282.
[12] São João de Ávila, Carta 41,OC, I 482, 123-135.
[13] São João de Ávila, Audi filia, 55.

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