Coleção virtus


CEGOU SEUS OLHOS



1.Caracterização

O juízo próprio “nos dá tal confiança em nossa razão e no próprio juízo que já não nos agrada consultar os demais, especialmente os nossos superiores, nem buscar luz mediante ao atento e discreto exame das razões que contradizem nossa maneira de ser. Tal conduta nos faz cometer graves imprudências que se espiam dolorosamente. Faz-nos também cometer grandes faltas de caridade nas discussões, ter insistência nos juízos, e rejeitar tudo aquilo que não se enquadra e nossa maneira de ver.
Essa conduta poderia nos levar a negar aos demais a liberdade que reclamamos para nossas opiniões, e a não submetermos, senão em parte e de má vontade, a direção do supremo pastor, e ainda diminuir e até  rebaixar os dogmas, com pretexto de explicar-los melhor do que o que se tem feito ate agora[1].


Pode nos levar a opor nossos juízos aos juízos de Deus. Por isso o profeta Isaias nos adverte, em nome de Deus, que nossos pensamentos e os pensamentos divinos podem ser muito distintos:
Abandone o ímpio seu caminho, e o homem mal seus pensamento, e volte ao Senhor, pois terá compaixão dele, ao nosso Deus, por que é rico em perdão.  Com efeito, meus pensamentos não são vossos pensamentos, e vossos caminhos não são os meus caminhos, e meus pensamentos acima dos vossos pensamentos.   (Is 55,7-9).

Alguns exemplos...


Exemplos típicos de “juízo próprio” são:

  • O que nunca pede conselho a quem sabe mais que ele.
  • O que pede conselho tendo suas decisões já tomadas.
  • O que despreza a direção espiritual ou é negligente para fazê-la.
  • O que despreza o conselho alheio.
  • O que não aceita de boa vontade as correções.
  • O que discute (ao menos interiormente) as ordens dos superiores.
  • O que defende com insistência suas opiniões em coisas discutíveis.[2]
  •  O que não muda seus pontos de vista, quando lhes demonstram seus erros.
  • O que subjetiviza tudo, julgando desde uma perspectiva parcializada.
  • O que forma seus juízos a partir das paixões que o dominam.
  • O que toma decisões sem desafetar-se dos gostos e medos que o condicionam (típico caso é a “eleição de estado” ou “vocação” realizada quando ainda “o olho de nossa intenção” não é “simples”, é dizer, quando não é eleita puramente para alcançarmos o fim que fomos criados e “ordenado [e] trazendo o fim ao meio” senão trazendo o meio ao fim.”[3])
  •  Santo Inácio caracteriza como “vontade do segundo binário” é o que faz seu próprio parecer, mas tratando-se de convencer-se de que isso é o que Deus quer “de maneira que assim Deus venha onde ele quer e não se determina deixar (a coisa que está apegado) para ir a Deus”[4],etc...  
 
          




O juízo próprio e a pertinência

Juízo próprio se relaciona com “pertinência”. A pertinência é um vicio que falsifica ou desfigura a perseverança. É uma falsa perseverança que aplica a firmeza na vontade onde não tem que aplicá-la.
A perseverança nos inclina a persistir no exercício do bem; a pertinência nos faz discutir e obstinar-nos em uma opinião quando tem razões autorizadas para duvidar dela.
Santo Tomaz define a pertinência, com Santo Isidoro, como “o que mantém sua opinião com impudor”; também o que pretende colocar razão em tudo.[5]

Por isso, Aristóteles, chamava este tipo de juízo de Ischyrognomones, que quer dizer “de juízo forte” ou também idignomones, é dizer de “juízo ou sentença própria.”[6]    
  Santo Tomaz seguindo o filosofo, faz uma interessante observação a respeito.
Sinala a diferença entre pertinente e o virtuoso.
O virtuoso não muda de opinião quando o assalta a concupiscência, mas o faz quando é persuadido por razões convincentes; ao contrario, o persistente ou teimoso, não abandona seu parecer por mais provas que  lhes dêem contra, no entanto se deixa convencer pela concupiscência. “Muitos destes, acrescenta, são arrastados pelos deleites, mas do que permite a razão, e são dignos de vitupério, pois rebeldes a razão se deixam escravizar pela paixão.”[7]

  O juízo próprio e a sua razão passional

Temos dito que o juízo próprio tem uma raiz passional.  Em efeito, quando Santo Tomaz fala da influência que a paixão exerce sobre a inteligência e a vontade, indica que um de seus efeitos próprios é o arrastar o juízo e aplicá-lo a justificação da referida paixão.  É uma influencia que exerce desde o objeto da paixão.
“A paixão do apetite sensitivo -diz- influi na vontade desde o ponto de vista do objeto, enquanto o homem, baixo a disposição passional, julga bom e conveniente o que livre daquela paixão, não estimaria assim. Esta imutação passional no homem ocorre de duas maneiras.
A primeira quando a razão fica totalmente impedida, perdendo o homem o uso da razão, como acontece em quem, à causa de um violento acesso de ira, ou sensualidade se volta demente ou louco, de modo análogo como pode acontecer por outras perturbações orgânicas; e isso acontece assim porque estas paixões não se produzem sem que tenha alguma alteração fisiológica.    Acontece com estes o que acontece com animais irracionais, que são arrastados necessariamente pela paixão: por não ter atuação da razão tão pouco tem pela parte da vontade.
Em segundo lugar, acontece as vezes que a razão não é totalmente absorvida pela paixão, senão que conserva em parte o juízo livre da mesma, e no mesmo sentido fica também parcialmente a atuação da vontade.”[8]
A paixão, portanto, influi sobre a vontade através da razão e sobre esta, por meio da imaginação e da cogitativa.
Uma determinada paixão se é muito forte, fixa de alguma maneira a imaginação em um objeto e isto predispõe para o juízo racional favorável a paixão.[9] Este juízo será o que chamamos “juízo próprio”.

Isto é mais forte, no entanto quando a paixão tem enraizado -pela repetição de atos passionais- a modo de habito passional.  Neste caso é capaz de exercer um predomínio absorvente sobre a razão e se caracteriza por:

1° cativar toda a atenção da consciência: um estado passional tende a monopolizar todo o campo da consciência.  Atrai até seu objeto a atenção com obsessão crescente.  O que ama passionalmente está constantemente preocupado com o que ama.

2° Aplica sua justificação à atividade do espírito: absorvendo a atenção, utiliza também a razão a seu favor para justificar sua afeição até o objeto passional.

E isto vale tanto para as paixões sensíveis como para as que se enraízam no apetite racional, (que São João da Cruz denomina “vícios espirituais”).

 Isso diz São João da Cruz ao recordar-nos, que o juízo próprio tem sua raiz no apetite, que volta sobre si mesmo ou sobre alguma coisa criada, de tal modo que tem seus juízos, e logo a soberba faz que o entendimento se aferre obstinadamente a eles.
Disse São João da Cruz, que também o espiritual deve purificar seu entendimento “Assim como, colocando os olhos em uma coisa, por pequena que seja, basta para tapar as vistas, que não veja outras coisas que estão adiante por grandes que sejam. Assim um leve apetite e ocioso ato que tenha a alma, basta para impedir todas as grandezas divinas, que estão depois dos gostos e apetites que a alma quer.
Oh! Quem poderá dizer aqui quão impossível é a alma que tem apetites julga as coisas de Deus como elas são! Porque, para acertar em julgar as coisas de Deus, tem que tirar totalmente o apetite e o gosto fora, e não deve de julgar com ele; porque infalivelmente virá a ter as coisas de Deus por não de Deus e as que não são de Deus por coisas de Deus.
Porque estando aquela catarata e nuvens sobre os olhos do juízo, não vê senão catarata, umas vezes de uma cor e outras vezes de outra, como elas se põe; e pensas que a catarata é Deus, porque, como digo, não vê mais que catarata que esta sobre o sentido, e Deus não esta sobre o sentido.
E desta maneira os apetites e gostos sensitivos impedem o conhecimento das coisas grandes.   O qual da bem a entender, o sábio     (Sab 4, 12) por estas palavras, dizendo: Pois o fascínio do que é vil obscurece o bem e o turbilhão da cobiça perverte um espírito sem maldade, a saber, o bom juízo.”[10]

Juízo próprio e soberba


Este pecado procede, em fim, da soberba e, portanto, se opõe a humildade.  De fato os vícios intelectuais são forma de soberba.
São Bernardo, em seu tratado sobre os graus de humildade e a soberba[11], coloca por este motivo, a curiosidade em primeiro grau de soberba; o juízo de menosprezo do próximo como o segundo; o juízo laudatório sobre si mesmo, ou seja, a jactância, em quarto, a singularidade, como quinto; a arrogância como sexto,e a presunção como o sétimo, todos os quais são graus de auto estima e de julgar-se muito superior a todos os demais.
E segue o oitavo grau que é a defesa dos próprios pecados, onde nos encontramos com uma das manifestações típicas do juízo próprio: o aplicar a inteligência em justificar ou defender seus próprios atos.  Se, apesar de tudo, as faltas são descobertas, o juízo próprio e soberbo conduz ao nono grau que é a confissão fingida, própria de quem, como diz o Eclesiástico na versão da Vulgata (19, 23), se humilham com malicia, e assim esconde sua pertinência baixo capa de falsa humildade.

 Só tenho mencionado, evidentemente, aqueles graus de soberba que se põe mais em manifesto a perversão do juízo e da inteligência.

Há que acrescentar que, o religioso, inclusive, se comporta em retrocesso na entrega feita a Deus, como assinala Santo Inácio: “...a todo verdadeiro religioso convém ... não reter coisa alguma para  si, como retém os que todavia guardam suas próprias vontades, e querem seguir seus próprios juízos, tornando a tomar a parte principal  do que já tinham entregado a Deus Nosso Senhor por mãos de seus superiores”.[12]


[1] Garrigou-Lagrange, as três idades da vida interior, Palavra, Madrid 1982 i,p.412
[2] Por defesa “terca” me refiro a que não tem argumentos racionais claros e seguros; ao contrario, não pode qualificar-se do juízo próprio a quem demonstra sua posição com uma argumentação rigorosa e serena, inclusive se se trata de questões opináveis. Mas ainda neste ultimo caso, quem não tem juízo próprio se manifesta em quem esta disposto verdadeiramente mudar de opinião quando se lhes demonstra seus erros.  
[3] Santo Inácio, Exercícios Espirituais[ em diante EEJ,n.169].
[4] Santo Inácio, EE, n.154
[5] II-II, 138, 2
[6] Ética a Nicómaco, VII.
[7] In Ethic., VII, 9, n.1442-1443.
[8] I-II,10, 3
[9] Escreve Santo Tomás: “O juízo e a apreensão da razão é impedido por uma veemente desordenada apreensão da imaginação e pelo juízo da virtude estimativa, como se põe de manifesto nos dementes.  Agora bem, é manifesto que a paixão do apetite sensitivo segue a apreensão da imaginação e o juízo da estimativa, do mesmo modo que a disposição da língua se segue o juízo sobre o gosto.  Pela qual vemos que os homens dominados por uma paixão não podem desviar-se facilmente da imaginação sobre as coisas as que estão aficionados. Conseqüentemente o juízo da razão geralmente segue a paixão do apetite sensitivo; e por conseguinte também o faz o movimento da vontade a que lhe natural seguir o juízo da razão”(I-II,77,1).   
[10] São João da cruz, Chama, 3,72-73.
[11] Cf. PL 182,941-972;em obras completas de São Bernardo, BAC, Madrid 1955,
t II, pp 882ss.
[12] Santo Inácio, Carta a Enrique de la Cueva,Obras Completas de Santo Inácio de Loyola, BAC, Madrid 1977, p. 918 (cito sempre por esta edição) 

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